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Algumas notas sobre a sociedade em conta de participação.

Entre os modelos de sociedades, a Sociedade em Conta de Participação oferece enorme interesse jurídico. É um daqueles temas pouco visitado na graduação, embora essa modalidade de sociedade tem sido cada vez mais utilizada.

 

A doutrina indica que a sociedade em conta de participação tem origem no contrato de comenda. Era negócio que se fazia, inicialmente, entre um capitalista que entregava dinheiro ao capitão de um navio para a expedição. O capitão fazia negócios em seu próprio nome com o capital recebido e os frutos eram partilhados. Como o capitão agia em nome próprio, o investidor capitalista se tornava oculto. Daí nasceu a figura da sociedade em conta de participação que tem, de um lado, o participante (sócio) investidor e de outro o participante (sócio) ostensivo.

 

Também se encontra registro na doutrina no sentido de que a sociedade em conta de participação serviu em algum momento a ocultar sócios que não poderiam praticar o comércio, como ocorria com os nobres. O comércio não era uma prática bem-vista pela sociedade medieval, porque praticado nos Burgos, por aqueles que procuravam escapar do poder feudal. Havia também a condenação da usura, que se reconhecia na prática do comércio. Por isso, nobres e clérigos se ocultavam nessas sociedades em conta de participação para colher proveito do comércio sem que pudessem ser notados.

 

Não há na doutrina consenso sobre a natureza jurídica da sociedade em conta de participação. Uma sociedade deve oferecer a possibilidade de ser identificada por um ente sujeito de direitos e obrigações, com uma estrutura que lhe pode atribuir a possibilidade de se tornar sujeito de direitos. No entanto, na sociedade em conta de participação o sócio ostensivo age em seu nome e se obriga pessoalmente perante terceiros, enquanto o participante apenas, distante dos negócios, quase sempre entra somente com o capital. Esta figura mais se aproxima de um contrato de participação do que de uma sociedade.

 

No Código Civil de 2002 esse modelo de sociedade pode ser utilizado para o exercício de qualquer atividade econômica (empresarial, intelectual ou rural).1

 

Apesar de antiga, a sociedade em conta de participação tem sido muito utilizada hoje por capitalistas (investidores), que entregam capital a empresários ou sociedades empresárias para fomento de negócios, partilhando-se os lucros.

 

Este modelo de sociedade pode ser encontrado nos empreendimentos imobiliários. Os adquirentes dos imóveis por construir (sócios participantes) entregam o capital ao empreendedor e depois recebem imóveis como resultado. É comum também em negócios eventuais, como importação de mercadorias. É um meio interessante de financiamento da empresa, com o uso do capital de investidores na aquisição de equipamentos e realização de projetos. Chega-se a dizer que a sociedade em conta de participação está revivendo.

 

O sócio ostensivo gerencia a sociedade e responde ilimitadamente pelas obrigações que contrair, porque age perante terceiros em nome próprio.2 O participante-investidor tem a sua responsabilidade limitada ao quanto foi investido.

 

Esta sociedade não tem registro, como não tem personalidade jurídica. Não é uma sociedade secreta ou ilícita. Ela pode ser conhecida e até levada a registro no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, mas a publicidade não altera a sua natureza, porque o contrato social produz efeito somente entre os sócios, e eventual inscrição de seu instrumento em qualquer registro não confere personalidade jurídica à sociedade (art. 993, CC).

 

O eventual registro do contrato, portanto, não tem qualquer efeito em relação a terceiros, porque a sociedade só vale entre os sócios. Há na doutrina quem prefira dizer que é uma sociedade discreta, porque ela só existe entre os sócios e tudo ocorre internamente.

 

Não há forma definida para a sua constituição, que pode ocorrer por escrito ou verbalmente. Também não há restrição alguma à sua prova, que pode ser feita por qualquer meio (art. 992, CC). É comum fazer a prova da sociedade em conta de participação pelo conjunto de documentos (cartas, mensagens, escritos, notas etc.). O contrato escrito, no entanto, é o meio de prova mais eficiente e previne litígios entre os participantes.

 

A Instrução Normativa da Receita Federal RFB 1.863, de 27 de dezembro de 2.018 obriga a inscrição da sociedade em conta de participação no CNPJ. Todavia, esta inscrição não interfere na forma de constituição da sociedade, prevista no art. 992 do CC, e não confere a esta sociedade personalidade jurídica (art. 993, CC). A inscrição é feita exclusivamente para fins tributários.

 

A contribuição de cada sócio deverá formar um fundo social – patrimônio especial (art. 994, CC). Interessante notar que esse patrimônio especial ingressa no patrimônio do sócio ostensivo, porque a contribuição do participante (investidor) é transmitida à titularidade do sócio ostensivo.

 

A sociedade em conta de participação não tem uma forma especial e pode ser provada, como visto, por qualquer meio (art. 992, CC). Não tem firma ou denominação social, assim como não tem personalidade jurídica. Logo, não pode agir em juízo.

 

Esta sociedade não está sujeita à dissolução ou liquidação, porque tudo se encerra com a prestação de contas do sócio ostensivo. Também não está sujeita à falência. No entanto, os participantes podem falir. Se a falência é do sócio ostensivo, a sociedade em conta de participação se extingue, apurando-se em prestação de contas se ao participante caberá crédito ou débito. O crédito será habilitado na falência como quirografário. O débito será cobrado pelo administrador da falência do sócio ostensivo.

 

Caso ocorra a falência do participante (sócio oculto), o contrato de sociedade segue com o sócio ostensivo, assegurando-se ao falido o recebimento dos resultados. Havendo dívida do participante falido, o administrador da falência deverá deliberar sobre o cumprimento da obrigação para o prosseguimento do contrato de sociedade em conta de participação.

 

Como se vê, a sociedade em conta de participação não pode falir, porque ela não existe perante terceiros.

 

Estabelece o Código Civil que o sócio ostensivo não pode admitir novo sócio sem o consentimento dos demais (art. 995), assim como não pode o participante, ainda que tenha maior capital, admitir outro sócio. Não há restrição expressa à transferência ou cessão da participação dos sócios, mas em razão da natureza pessoal, que pode se definir na sociedade, a concordância dos demais será necessária. Melhor seria que esta questão fosse resolvida pelo contrato.

 

A sociedade em conta de participação não se confunde com a figura do investidor-anjo, prevista no art. 61-A, do Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte3. Esse investidor, que a Lei expressamente declara que não é sócio, não participa da gerência e não responde por dívidas, é remunerado pelo seu capital e tem direito à apuração de haveres ao final da sua participação.

 

Também não pode ser confundida a sociedade em conta de participação com a sociedade em comum, que pressupõe uma relação externa da sociedade.  Recai justamente nesta vida externa da sociedade, que se apresenta como se fosse uma sociedade regular (embora não seja), a característica mais marcante da sociedade em comum, para distingui-la da sociedade em conta de participação, de vida secreta e desconhecida de terceiros.4

 

__________

 

1 Nesse sentido o enunciado n. 208 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Arts. 983, 986 e 991: As normas do Código Civil para as sociedades em comum e em conta de participação são aplicáveis independentemente de a atividade dos sócios, ou do sócio ostensivo, ser ou não própria de empresário sujeito a registro (distinção feita pelo art. 982 do Código Civil entre sociedade simples e empresária).”

 

2 A clara explicação de João Pedro Scalzilli e Luis Felipe Spinelli não deixa dúvida a respeito: “Ao sócio ostensivo cabe exercer a atividade prevista no objeto social em seu nome próprio e por sua conta e risco; ele é o protagonista da operação, o senhor do negócio, e como tal o dirige. Ao sócio participante resta, em princípio, tão somente fornecer parte dos meios necessários para possibilitar a exploração do negócio – leia-se investir na atividade -, não se responsabilizando pessoalmente pelo eventual insucesso na operação perante terceiros. Daí a menção de Francesco Galgano no sentido de ser o participante um financiador externo da empresa, um investidor de capital que expõe o próprio aporte aos riscos do negócio explorado por terceiro. Tal situação põe em evidência duas facetas da conta de participação: a externa e a interna, o que faz com que possua a SCP uma estrutura legal tanto quanto diferente das outras espécies societárias.” Os autores acrescentam: “[p]ercebe-se que a figura em exame é uma sociedade ad intra, ou, como diz Carlos Gomes de Oliveira, uma sociedade intra muros, sem relações jurídicas com terceiros, para os quais é, na verdade, ineficaz (arts. 991 e 993). Por isso, é equivocado dizer que a sociedade só existe e vale somente entre sócios. Na realidade, ela existe e vale perante todos (sócios e terceiros), porém, produz efeitos única e exclusivamente entre os sócios, daí porque Malagarriga salienta ser o contrato social res inter alios acta. Acertada, portanto, a redação do art. 993 do Código Civil.” ((Sociedade em Conta de Participação. Ed. Quartier Latin, 2015, p. 67 e 77).

 

3 A Lei Complementar n. 155/2016 introduziu a figura do investidor-anjo no Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2016)., nos termos seguintes: Art. 61-A.  Para incentivar as atividades de inovação e os investimentos produtivos, a sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte, nos termos desta Lei Complementar, poderá admitir o aporte de capital, que não integrará o capital social da empresa. § 1º  As finalidades de fomento a inovação e investimentos produtivos deverão constar do contrato de participação, com vigência não superior a sete anos. § 2º  O aporte de capital poderá ser realizado por pessoa física ou por pessoa jurídica, denominadas investidor-anjo. § 3º  A atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente por sócios regulares, em seu nome individual e sob sua exclusiva responsabilidade. § 4º O investidor-anjo: I – não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou voto na administração da empresa; II – não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil; III – será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação, pelo prazo máximo de cinco anos. § 5º  Para fins de enquadramento da sociedade como microempresa ou empresa de pequeno porte, os valores de capital aportado não são considerados receitas da sociedade. § 6º  Ao final de cada período, o investidor-anjo fará jus à remuneração correspondente aos resultados distribuídos, conforme contrato de participação, não superior a 50% (cinquenta por cento) dos lucros da sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte. § 7º  O investidor-anjo somente poderá exercer o direito de resgate depois de decorridos, no mínimo, dois anos do aporte de capital, ou prazo superior estabelecido no contrato de participação, e seus haveres serão pagos na forma do art. 1.031 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, não podendo ultrapassar o valor investido devidamente corrigido. § 8º  O disposto no § 7º deste artigo não impede a transferência da titularidade do aporte para terceiros. § 9º A transferência da titularidade do aporte para terceiro alheio à sociedade dependerá do consentimento dos sócios, salvo estipulação contratual expressa em contrário. § 10. O Ministério da Fazenda poderá regulamentar a tributação sobre retirada do capital investido. Art. 61-B.  A emissão e a titularidade de aportes especiais não impedem a fruição do Simples Nacional.   Art. 61-C.  Caso os sócios decidam pela venda da empresa, o investidor-anjo terá direito de preferência na aquisição, bem como direito de venda conjunta da titularidade do aporte de capital, nos mesmos termos e condições que forem ofertados aos sócios regulares. Art.  61-D.  Os fundos de investimento poderão aportar capital como investidores-anjos em microempresas e empresas de pequeno porte.

 

4 Nesse sentido a opinião de Waldemar Ferreira (Tratado de Direito Comercial. 3º vol, Saraiva, 1961, p. 539).

 

Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/novos-horizontes-do-direito-privado/343075/algumas-notas-sobre-a-sociedade-em-conta-de-participacao